top of page

CICATRIZES INVISÍVEIS: O OLHAR DA NEUROPSICANÁLISE SOBRE OS TRAUMAS

  • Dani Bonachela
  • 2 de jun.
  • 5 min de leitura

ree

Nem toda cicatriz é aparente. Algumas se instalam de maneira quase silenciosa, escondidas nas dobras mais sutis do cérebro — ali, onde moram memórias mal digeridas, sensações confusas e reações emocionais que nem sempre conseguimos nomear. Ao contrário das lesões físicas, os traumas psíquicos não gritam de imediato. Mas se fazem sentir — no corpo, nas ideias, nos afetos e nos vínculos que vamos (re)construindo pela vida. É nesse território sensível que a Neuropsicanálise se propõe a atuar: como uma ponte entre dois mundos que, por muito tempo, seguiram separados — a psicanálise e a neurociência.

 

Entre Freud e o cérebro: os primeiros passos dessa ponte


Antes de ser o pai da psicanálise, Freud foi neurologista — apaixonado pelo funcionamento do sistema nervoso, chegou a publicar estudos relevantes sobre afasia e paralisia. A famosa frase “A anatomia é o destino” (Freud, 1908) pode, hoje, ser relida como um prenúncio do que a Neuropsicanálise tenta compreender: até que ponto o nosso corpo — e mais especificamente, o cérebro — determina o que sentimos? E como nossas vivências subjetivas — cheias de afetos, traumas, desejos — interferem na estrutura desse mesmo cérebro?

A Neuropsicanálise, como abordagem mais formal, começou a tomar corpo nos anos 1990, especialmente a partir das pesquisas de Mark Solms — neurocientista e também psicanalista. O foco não está em reduzir a psique à química cerebral, mas sim em construir um diálogo possível entre aquilo que se sente e o que se pode medir; entre o que escapa à consciência e o que pode, de alguma forma, ser detectado por aparelhos de imagem. Dentro disso, o trauma aparece como um campo fértil de investigação: ele existe tanto no discurso quanto nos circuitos cerebrais alterados pela dor.

 

Como a psicanálise enxerga o trauma


Na psicanálise, o trauma não é definido apenas pelo evento em si, mas pela incapacidade do aparelho psíquico de elaborar, de dar algum sentido àquela vivência. Em sua obra, Freud já fala sobre a repetição compulsiva — aquela tendência do sujeito traumatizado de retornar inconscientemente à cena do dano, tentando, quem sabe, dominá-la simbolicamente.

Um conceito-chave é o da Nachträglichkeit (ou posterioridade), que mostra como certos acontecimentos só ganham valor traumático mais adiante, quando resgatados por novas experiências que os reatualizam. O trauma, portanto, não deve ser visto com uma pedra no caminho, mas sim como uma cicatriz que pulsa conforme a história do sujeito vai se desdobrando.

Lacan, por outro lado, via o trauma como um furo no simbólico — uma quebra na estrutura da linguagem que retorna sob forma de angústia, sintomas ou comportamentos impulsivos. O trauma, dizia ele, não se "cura". Ele se atravessa. E, pra atravessá-lo, é preciso conseguir simbolizá-lo — dar-lhe um lugar no discurso, na própria narrativa.

 

A visão da neurociência sobre o trauma


As neurociências trazem imagens e dados concretos sobre como o trauma pode afetar, literalmente, o funcionamento do cérebro. Pesquisas com neuroimagem mostram que pessoas submetidas a situações traumáticas — como abusos, perdas importantes ou violência — frequentemente apresentam alterações em regiões como a amígdala (ligada ao medo), o hipocampo (memória) e o córtex pré-frontal (tomada de decisão e controle emocional).

Uma amígdala hiperativa reage com alarme mesmo quando não há ameaça real. O hipocampo, se afetado pelo estresse crônico, pode encolher — dificultando a distinção entre presente e passado, o que ajuda a explicar por que muitos revivem o trauma como se ainda estivesse acontecendo. Já o córtex pré-frontal, enfraquecido, perde parte de sua capacidade reguladora — o que impacta diretamente o pensamento crítico e o controle de impulsos.

Em termos neurobiológicos, o trauma desestabiliza o equilíbrio do cérebro. Mas os efeitos não param por aí — atravessam o corpo, podendo se manifestar como dores persistentes, insônia, distúrbios gastrointestinais e outros sintomas psicossomáticos. A dor emocional, como se vê, também se encarna.

 

A visão integrativa da Neuropsicanálise


A Neuropsicanálise tenta costurar essas duas abordagens — sem que uma elimine a outra. O trauma, nesse contexto, é visto como uma ferida que deixa marcas tanto no cérebro quanto no inconsciente. A ideia não é localizar o “inconsciente” em algum canto do cérebro, mas entender como as experiências subjetivas se entrelaçam com circuitos neurais.

Mark Solms, um dos principais teóricos da Neuropsicanálise, defende que o inconsciente freudiano tem correspondência com os processos inconscientes estudados pelas neurociências — aqueles que influenciam nossas escolhas sem que a gente se dê conta. Quando alguém traumatizado evita, por exemplo, certos sons, lugares ou cheiros, não é só porque “lembra” simbolicamente do que aconteceu. Muitas vezes, é porque seu sistema nervoso continua funcionando como se o perigo ainda estivesse ali — o alarme não foi desligado.

Nessa lógica, o setting analítico pode se beneficiar (e muito) da compreensão das reações fisiológicas ao trauma. Quando o analista entende que certas respostas do paciente não são meramente “resistências”, mas reflexos do sistema nervoso em estado de alerta, a escuta se torna mais sensível, mais justa até.

 

Psicanálise contemporânea e a clínica do trauma


A clínica contemporânea está repleta de sujeitos marcados por vivências trau-máticas — mulheres que sofreram violência, crianças negligenciadas, pessoas que sobreviveram a tragédias íntimas ou coletivas. Raramente esses pacientes chegam com queixas bem formuladas. Muitas vezes, eles falam por sintomas: insônia, irritação, ansiedade, sensação de vazio. E tudo isso demanda tempo, escuta e presença.

A psicanálise, com sua aposta na fala como instrumento de elaboração, continua sendo uma ferramenta potente. Mas ela se fortalece ainda mais quando dialoga com os saberes da neurociência — sem reducionismos, sem querer transformar sofrimento em pura química, mas com abertura para enxergar o ser humano em sua complexidade.

Não se espera que o analista vire neurologista — longe disso. Mas reconhecer que o sofrimento também deixa marcas biológicas é um passo importante. Afinal, o caminho da cura passa tanto pelo corpo quanto pela palavra, pelo vínculo e pela chance de dar um novo sentido à dor.

 

CONCLUSÃO


A Neuropsicanálise representa um movimento ousado e necessário: o de reunir duas formas de entender o ser humano — o que pensa e o que sente, o que fala e o que silencia. Ao integrar escuta e ciência, ela oferece um modo mais abrangente e profundo de acolher os traumas — suas raízes, seus rastros e suas possibilidades de transformação.

Compreender o trauma exige mais do que conhecer o cérebro ou mergulhar no inconsciente. Exige, sobretudo, atenção ao que o corpo cala, ao que a mente insiste em repetir, e ao que a linguagem tenta, aos trancos e barrancos, costurar. Porque, no fim das contas, toda cicatriz invisível é também um convite — talvez dolorido — a reatar o fio entre dor e sentido. E, quem sabe, entre a ferida e algum tipo de cura.

 


BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 18.

FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1895). In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.

KLEIN, Melanie. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LEDO, Jorge. Freud e a neurociência: a clínica psicanalítica em diálogo com as neurociências. São Paulo: Zagodoni, 2014.

SOLMS, Mark; TURNBULL, Oliver. O cérebro e o mundo interno: uma introdução à neurociência subjetiva. Porto Alegre: Artmed, 2002.

VAN DER KOLK, Bessel. O corpo guarda as marcas: cérebro, mente e corpo na cura do trauma. São Paulo: Paidós, 2017.

 
 
 

Comentários


©2030 

bottom of page