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Reflexões sobre Arte como ferramenta da Psicanálise

  • Dani Bonachela
  • 3 de jan. de 2023
  • 5 min de leitura

Atualizado: 24 de mai. de 2023


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Se considerarmos todas as criações humanas ao longo da história, o urgente impulso de modelar objetos, produzir imagens, compor sons, realizar movimentos, interpretar cenas, em uma necessidade ardente de se expressar para o mundo de um modo geral, faz de alguns indivíduos, os artistas, seres míticos, quase que especiais, que através da arte se fazem transitar displicentemente entre a genialidade e a loucura, entre o consciente e o inconsciente, registrando cada milímetro da evolução do Homem sobre o Planeta Terra, construindo a cultura dos povos e escancarando para toda a humanidade nossas fragilidades psicológicas. Basta entrarmos em qualquer museu de arte, em qualquer país, de qualquer povo que já tenha habitado esse planeta para termos uma pequena da força e da permanência da arte em nossas vidas.


Mas afinal, o que é arte?


É de se perder a conta o número de conceitos e definições que temos na literatura sobre arte. Diversos autores e estudiosos já arriscaram esse desafio. Se olharmos no dicionário veremos que Arte é uma palavra que tem origem no vocábulo latino ars e que significa técnica ou habilidade. Mas sabemos, até intuitivamente, que ela é muito mais que isso, é uma forma do indivíduo se expressar, uma forma de ele se comunicar, até mesmo quando aquilo que está sendo comunicado escorrega das profundezas do seu inconsciente, apesar de ou além do caráter estético que a arte carrega consigo. E já por essa razão podemos perceber que não se trata de uma mera coincidência arte e psicanálise estarem, desde sempre, tão conectadas.


Freud, pai da psicanálise, a partir de seus estudos e prática clínica, mencionou a arte em seus escritos em algumas ocasiões, chegando a dizer que a entendia como um “mobilizador de angústias”. Também se sabe que ele passava várias horas em museus observando e analisando obras de arte e seus possíveis significados. Foi ele quem disse que “há um caminho de volta da fantasia para a realidade; este caminho é a arte”.


Freud vislumbrava o artista como esse indivíduo que consegue encontrar o caminho de volta à realidade após um mergulho em seu inconsciente, uma pessoa com a capacidade de transformar os seus instintos em realidades através da arte e de transformar esses impulsos em um resultado estético que pudesse ser exteriorizado ao mundo.


Arte e Psicanálise


Foi a partir de seus estudos sobre arte que Freud também formulou o conceito de sublimação, um mecanismo de defesa que permite ao indivíduo trocar um objetivo sexual por algo com um valor superior e socialmente aceito. Arte seria, portanto, uma forma de veículo que facilitaria a mobilização de sentimentos, sendo por isso uma maneira de transformar ou modelar o sofrimento, as angústias, os impulsos, bem como outros mecanismos inconscientes em uma obra artística. Como não poderia deixar ser, mais uma vez arte e psicanálise se esbarrando: ambas trabalhando com o mesmo objeto, a mente humana, mas com métodos diferentes.


O interesse de Freud pela arte partiu também da leitura dos significados reprimidos e inconscientes que era possível serem observado nas obras de arte, uma vez que o resultado do exercício artístico podia ser entendido como uma atividade de expressão sublimada de desejos geralmente proibidos. Freud percebeu que através da arte era possível transformar aquilo que o indivíduo carrega em seu interior, e que muitas vezes está escondido e lhe é perturbador, em algo mais tolerável, tanto para si próprio quanto para o meio social a sua volta na materialização de uma obra de arte.


Caminhando juntas, lado a lado, mas por vias distintas, arte e a psicanálise seguiram trabalhando pela busca do conhecimento da mente humana, sendo talvez, por que não arriscar, complementares? Ambas sondando e acessando as profundezas do invisível que habita em cada ser humano, funcionando quase como um farol ou uma corda guia nesse mundo desconhecido e tantas vezes perigoso.


Nem todos os artistas conseguiram fazer esse retorno a realidade, pelo menos não ilesos. A história apresenta diversos casos de artistas que terminaram suas vidas em hospitais psiquiátricos, sofreram com problemas mentais graves ou até mesmo cometeram suicídio, como o pintor Van Gogh, o poeta Antonin Artaud, a escultora Camille Claudel, o pintor Francisco Goya, o compositor Beethoven, o filósofo Marquês de Sade, o artista Arthur Bispo do Rosário, a escritora Clarice Lispector, o dançarino Nijinsky, o escritor Machado de Assis, o também escritor Ernest Hemingway, o pintor Edvard Munch e muitos outros. Fácil perceber que loucura disfarçada ou extremada, sempre esteve de alguma forma associada à arte e a genialidade nas grandes figuras da arte, como se a necessidade de escapar da realidade fosse um imperativo irremediável para as grandes criações ou para a execução das imponentes obras que ficaram para sempre registradas em nossa História..


Prato cheio para a psicanálise, a matéria prima do artista em seu processo criativo, além do lápis, tintas, pincéis, nada mais é que uma coleção de sentimentos e emoções, muitas vezes reprimidas, combinadas e misturadas, retiradas do consciente e do inconsciente, que se organizam e se desorganizam, materializando-se enfim em algo que pode ser visto, ouvido e admirado por todos.


Arte como ferramenta


Para os indivíduos que não são artistas e nunca pretenderam alçar voos da genialidade criativa a manifestação do exercício artístico também tem sua utilidade e seus benefícios e pode ser compreendida pela psicanálise como uma forma de refrigério da vida cotidiana, uma válvula de escape, das pressões diárias, um complemento terapêutico, uma ferramenta que permite ao indivíduo se libertar das possíveis amarras que a vida real costuma impor.


Mas a psicanálise vai além e propõe que muito mais que uma simples válvula de escape para evitar possíveis problemas mentais, quando esses já existem, a arte pode ser de grande utilidade, especialmente por propiciar o estabelecimento dos primeiros vínculos com aquilo que o indivíduo está realmente sentindo dentro de si. Sem contar que a utilização da arte como ferramenta da psicanálise trás também a grande vantagem de poder ser aplicada em diversas faixas etárias, abrangendo desde as crianças bem pequenas até a terceira idade, de forma bastante segura e lúdica.


Grandes psicanalistas ao longo da história referiram-se a arte e à sua utilidade e eficácia no tratamento psicanalítico, como por exemplo, Melanie Klein que sugeriu a arte como um reorganizador da estrutura da mente, e Winnicott que a compreendia como um meio para dar ou encontrar um significado para o que fazemos.


Podemos concluir assim que mesmo sendo disciplinas bastante diferentes, elas se mantêm estreitamente conectadas. Tanto a arte como a psicanálise se ocupam da mente humana, cada uma a sua maneira e por suas próprias razões, ambas se convergem no sentido de buscar em seus aspectos mais profundos tudo aquilo que necessita ser trazido à tona, aquilo que precisa ser descoberto ou de alguma forma extravasado para que o indivíduo consiga enfim lidar com suas fragilidades psicológicas para talvez alcançar uma vida mais plena.



Referências Bibliográficas


DE BOTTON, Alain, John Armstrong. Arte como terapia. tradução Denise Bottman. 1ª.edição – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.


JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - vol. 1: As bases conceituais. 2ª. edição – Rio de Janeiro: Zahar, 2000.


ROUDINESCO, Elisabeth. Sigmund Freud, Na sua época e em nosso tempo. 1ª edição - Rio de Janeiro: Zahar, 2016.


ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. – Porto Alegre: Artmed, 2004.

 
 
 

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